sábado, 6 de março de 2010

com seus mistérios


Ela tem os passos curtos como duma criança e a respiração ofegante dum sedentário.
Seu coração parece ter pressa e seus pensamentos têm medo.
Vive a rotina dos dias e se mistura aos demais como se não guardasse um grande segredo.
Como se as olheiras que ostenta fossem fruto apenas do cansaço dos dias.
Do cansaço nobre da correria por horários e da busca daquelas metas coloridas das propagandas de TV.
Exibe um sorriso triste em resposta aos cumprimentos que recebe pelo caminho.
Procura ser doce.
Não pretende ser o foco do mundo e nem quer deixar que sejam vistas suas chagas.
Não deseja estampar na face do outro uma dor que é só sua.
Permanece só, correndo dum lado pra outro, com sacolas e papéis.
Vai cumprindo o estereótipo do cidadão acima de qualquer suspeita.
Que corre, trabalha e deseja como todos.
Só que agora seus caminhos são mais tortuosos e não tem mais o tempo como seu cúmplice.
Ele não mais aplaca suas feridas e não gera apenas lembranças depois de passada a tempestade.
O tempo é agora combustível, não apazigua - incita.
Não refreia mais suas lágrimas.
Ele agora as desperta e as atiça, como o vento que faz da brasa o fogo.
E estando com o peito em chamas só consegue fugir de si mesma quando se esconde.
Se refugia no silêncio do dia com o aval do mundo para estar ausente.
E chora.
Já sabe sem erros o percurso que seguirá em seguida. Mas ainda teme.
Sabe que guardará consigo seus mistérios e não deixa rastros.
E passando se os dias, segue personificando seu ideal inquestionável, disfarçando a apatia, assumindo pseudo projetos de vida e sufocando seu pranto.
Anseia pelo dia que não precise mais lutar contra sua vontade mais íntima e que possa libertar sua alma, já cansada do longo cárcere.
Ainda segue, mas com a única esperança de logo partir.

Um comentário:

  1. "O tempo é agora combustível, não apazigua - incita"... Delicadíssimo texto! Ótimo!

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