terça-feira, 13 de abril de 2010

pela metade


Levanto pela manhã com a certeza de que preciso de mais um dia inteiro de cama macia, travesseiros enroscados e despertador estragado.
Não é mau humor ou tristeza. Ou melancolia ou angústia.
É cansaço. Preciso de férias.
Preciso de férias de mim mesma e das minhas idéias.
Preciso dum dia de inverno com vento cortante que bate na face, um cappuccino com chocolate, um cigarro e uma leitura instigante.
E no meio duma tarde inteira, me prender aos devaneios poéticos dum escritor qualquer que me fale à alma e me faça não lembrar do fogo interno que me corrói as entranhas e não me deixa tranquila.
E me perder autisticamente num colo imaginário de amor e cumplicidade incondicionais que me façam sentir viva sem me sentir em brasa.
Simplesmente porque estou cansada dessa velha história de se discutir se o copo está meio cheio ou meio vazio. De que me importam as perspectivas?
O copo está pela metade.
E nunca soube realmente viver pela metade.

terça-feira, 6 de abril de 2010

alívio e dor

alivio
E aquele aperto no peito de vontade de te ver tem agora outro nome. Não é mais espera.
E aquela fala desenfreada que preenchia o tempo antes da sua chegada, subitamente se calou.
E aquele calor que me acendia o peito em brasa, hoje é frio e me rasga a carne.
E aqueles sorrisos de moleca que eu permitia saltar dos lábios, amarelaram-se.
E aquela certeza que me guiava os dias me abandonou pelo caminho.
E aquela sensação de poder ganhar o mundo evaporou-se em meio aos fatos.
E aquele desejo de pular de pára-quedas virou medo de não sobreviver ao baque.
E aquelas lágrimas de contentamento apenas me deixam nebulosos os olhos.
E aqueles planos que me enfeitavam os tempos me torturam a alma.
E aquele colo que me serenava a loucura agora simplesmente me enlouquece.
Hoje, desvendados os olhos, posso ver o mundo sem as cores que iludem e distorcem.
Hoje, sem os ruídos das palavras doces, posso captar a mensagem por detrás das falas.
Hoje, com os sentidos aguçados, experimento o gosto amargo e doce da verdade escondida e me reinvento.
Hoje sou paradoxo.
Sou misto de alívio e dor.

domingo, 4 de abril de 2010

sem brilho


Ela que nunca teve a predileção doce pelos vitimizados, amanhece em choque.
Acorda mais um dia com aquele pensamento intruso que insiste em a colocar em situação indigna.
Nunca quis merecer a  pena alheia e agora está pasma: experimenta a nada agradável sensação de auto piedade.
Em seu íntimo, espera ansiosamente que os outros lhe olhem com olhos de comiseração e lhe ofereçam o colo que se oferece aos esquecidos pela vida.
Sim, ela morre de pena de sim mesma. Considera-se hoje, injuriada pelo mundo.
Passa seus dias ruminando, numa incansável procura pelas lacunas que por ventura tenha deixado e que expliquem sua falta de sucesso em seus propósitos.
Refaz em pensamento os trajetos que percorreu por escolha e com empenho.
Recorda os caminhos traçados adorável e credulamente cujas metas eram boas, em essência.
No meio do dia, revê como que numa reprise dum filme clássico, as situações e circunstâncias em que optou pelo outro, em que se colocou em milésimo plano, com apenas a esperança de ser merecedora de alcançar o mérito do cuidado dedicado; apenas à espera de conhecer a reciprocidade autêntica daqueles por quem tem tanto afeto.
Vive agora em meio a um turbilhão de sentimentos e sensações ruins. Mistura-se às tristezas, revoltas e mesmo às culpas pelo fracasso pessoal que estampa no peito e parece lhe deixar o corpo sem forças.
Na verdade, só queria não carregar na alma os estigmas de não encontrar o reconhecimento pela sua dedicação.
Só ambiciona sentir-se amparada e acolhida pelos braços do amor que tanto precisa e procura.
E nessa busca por seus erros e acertos, quase se convence de que merece compaixão pela sua melancolia que se arrasta pelos dias.
Mas reconhece que em meio a seus anseios de acalmar os humores, muito já se equivocou nos desejos e nos atos.
Revolta consigo mesma, mas se perdoa ao se lembrar de que mundo também erra.
Conforta-se pensando que um caminho solitário é sempre mais cheio de espinhos, ou simplesmente tem desafios que parecem mais ferozes.
Sim, seu coração sente que faz jus à clemência.
Numa última tentativa, roga aos céus, com uma fé que muitas vezes deixou guardada em silêncio. Suplica que a realidade tenha novas cores.
Mas nada. O mundo continua ileso, como se o cosmos não fosse capaz de nutrir por ela a mesma dedicação e carinho.
Procura não mais pensar.
Abafa seu pranto e sente que não tem mais escolhas.
Só lhe resta seguir em frente.
Sem brilho.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

ideologia pura

vida
Desejo a superficialidade.
Quero pairar pelo raso da vida sem convicções ou ideias eternas.
Desejo ter apagada essa chama apaixonada pelo que creio. Não quero mais crer em nada.
Quero o desapego das coisas internas.
Quero me tornar a mais pragmática das materialistas.
Quero ter a ambição pequeno burguesa a coordenar meus passos e as velhas convenções do mundo a me confortar as frustrações e fracassos íntimos.
Quero apagar de vez os desejos que me possam causar esses fracassos.
Quero deixar sucumbir à realidade feroz as pequenas causas pelas quais luto, desde sempre, e assumir como meu o sonho maior o protótipo de vida do lugar comum, cujas expectativas são a roupa da moda, o relacionamento padrão e as conversas perdidas nos eventos mais elegantes e influentes da sociedade.
Quero como compromisso diário assistir o Jornal Nacional e acreditar em suas verdades, acompanhando a cotação da bolsa de valores de Nova Iorque e me apavorando com todas as novas epidemias e até mesmo pandemias do momento.
Quero assistir todos os filmes de Hollywood e ter certeza de que no fim das contas nossa falta de humanidade não é defeito tão grave quanto nossa falta de estilo.
Quero me vestir de acordo com as dicas da Glorinha Kalil, ter o penteado liso ou crespo das mocinhas da novela e viver um romance cuja trilha sonora seja a música da que se repete incansavelmente nos carros pelas ruas, que hoje pode ser tocada por uma banda de rapazes emo cantando uma paixão adolescente e amanhã uma dupla sertaneja que fale de traição e de amor como sinônimos.
Quero passar minha vida correndo de um emprego para outro, vestindo a camisa da empresa e tendo a certeza de que o ideal de sucesso é um tailleur de grife e convites para eventos em que ninguém se suporta, mas que todos fazem questão de aparecer juntos na foto oficial, com sorrisos poderosos que escondem os medos e desejos genuínos que por ventura ainda brotem na alma.
Quero ter um casamento longo e duradouro cuja foto da sala recorde o comercial da margarina e esconda bem, assim como meu discurso e meu sorriso ensaiado, os arrependimentos e medos que não me permitiram viver o que eu quis de verdade por exigir de mim coragem e atitudes que muitos não aprovariam ou seriam capazes de apoiar. E que por medo do mundo não enfrentei e guardei para mim.
Quero envelhecer acreditando que aos 60 anos estarei na melhor idade da vida independente da vida que eu tenha levado e do que eu tenha construído e desejado, mesmo sem perceber, pelo caminho.
Quero encerrar minha história tendo a certeza de que valeu a pena não ter questionado o mundo e feito tudo aquilo um dia me mostraram que precisava ser feito, sendo criativa e inovadora apenas quando fosse realmente necessário e previsto.
Quero morrer, enfim, duma dessas enfermidades cuja medicina terá feito de tudo para curar, me revirando inteira e me causando mais dores que a própria doença, mas que me fez mártir no fim da minha jornada.
Sim, eu queria uma vida mais fácil, confesso.
Mas não. Essa não será minha trajetória.
Pois no peito trago comigo uma paixão desesperada pelas minhas verdades e meus anseios que nascem autênticos, confusos e intensos. Tão meus. E pelos quais travo batalhas infindáveis e silenciosas.
Sigo pelo mundo entre amores eternos e irremediáveis.
Aproximo-me do que é mundo sem nunca me esquecer do que sou eu. Trabalhando conforme creio ser correto sem, contudo, ter ambições capitalistas. Conversando com meio mundo, mas tendo por perto apenas quem preciso para poder respirar. Cumprindo os compromissos sem que eles se tornem meus donos e me envolvendo apaixonadamente com quem me faz sentir viva.
Vou jogando dados com a vida - acertando e errando. E pode ser que no fim da minha história eu tenha vivido encantadoramente, estereotipadamente ou não, mas por opção. Talvez tenha permanecido sozinha ou tenha tido um amor de televisão e venha a ter uma velhice que pareça realmente ‘a melhor idade’.
Mas quando eu for embora dessa Terra ‘de morte matada ou morrida’, com muito sofrimento ou nenhum, não importa, não serei mártir, nem tampouco terei vendido as necessidades mais minhas.
Talvez simplesmente morra de ideologia fulminante.