sexta-feira, 9 de novembro de 2012

era uma vez um homem sozinho



Era uma vez um homem sozinho.
Ele vivia, comia, sorria – sozinho. Sempre sozinho.

Todas as manhãs ele se levanta, uns dias mais cedo, outros atrasado como se quisesse que o mundo parasse para esperar seu sono de gente cansada.

Ele trabalha todos os dias para ganhar o sustento do corpo e brincar de ocupar a mente e a alma. Ele acredita no que dizem de que cabeça vazia é oficina do diabo. Ainda que não acredite em diabo, deus ou entidades. Mas gosta da metáfora, entende por diabo todas as ideias de desencanto e todas as coisas que o afastam do melhor de si mesmo.

Ele é um romântico. Gosta de clichês e pieguices do mundo do cinema, da música, dos encontros e desencontros da vida. Mas ele mesmo chama de tudo isso de besteira e finge ao mundo tentando convencer a si mesmo que tudo isso nada mais é que uma conspiração das mídias televisivas e de Hollywood para que se precise do outro, que se compre flores e se viaje pelo mundo se hospedando em hotéis caros para encantar o cônjuge.

Ele acredita no amor. Mas não conta para ninguém, sequer para si mesmo, porque lhe ensinaram que amar é compromisso e devoção. E se comprometer e ser devoto são coisas cristãs demais para serem humanas. Ser humano mesmo é ser livre, voar ainda que sem asas tendo como guia o seu próprio instinto,  adaptando o mundo a si, sem precisar jamais do contrário. E ser livre, como ele aprendeu pela vida, não combina nada com amar.

Ele chora de alegria e tristeza - sozinho. Sente as dores do mundo, se embriaga com a fragilidade humana, sente no corpo e na alma (poeticamente, pois não consegue realmente acreditar em alma) cada uma das infinitas possibilidades do ser. Mas não as vive. Emociona-se com a poesia, o cinema e a música, mas pouco com a vida, a não ser que essa se apresente quase como uma obra a ser contemplada. Até porque para emocionar se com a vida ele teria que deixar seu mundo invadir pelo outro e o outro... Ahh, o outro confunde tudo. O outro talvez entendesse suas lágrimas como um convite, e ele não está disponível para fazer a devida sala.

Ele sabe de tudo um pouco. Entende de artes, política, filosofia. Ele tem uma teoria e um teórico ou um poeta preferidos para cada momento do mundo, para cada tema de discussão da academia ou da mesa do bar. Ele ama as letras, os versos, os livros, as ideias. Ama tanto que muitas vezes se esquece de que elas nada mais são que impressão de mundo de alguém que vivia, sofria e procurava incessantemente uma resposta para vida humana. Ama as letras como se fossem vivas e talvez por elas viva. Como sua casa fosse uma grande biblioteca dividida em setores, com cheirinho de papel antigo e vontade de espirro e que pudesse viver as emoções e os afetos que lhe são tão confusos apenas mudando de prateleira.

Ele precisa apenas de água, ar e comida. Nunca entendeu alguém que precise de carro do ano, convenção social ou de gente. Nunca entendeu esse laço doido que liga as pessoas e que as impede de serem racionais e escolherem o que é melhor para elas próprias de fato, o tempo todo. Nunca entendeu a fragilidade de ter no outro um porto seguro, um colo que aquece e que anda junto. Necessidade, para ele, é coisa séria demais para ter nome, sobrenome e número da previdência social. Necessidade mesmo, só como as dos bichos – para sobrevivência. Mas se assusta com aquela dor no peito estranha que chamam de saudade quando se está longe de alguém, ou aquela outra chamada angústia que atrapalha seu discernimento e que o entristece tanto, simplesmente por lhe sobrarem companhias e parecer lhe faltarem companheiros. Nunca entendeu que poderia sofrer de solidão já que a defendia tanto como forma de vida.

Era uma vez um homem sozinho, que andava sozinho, falava sozinho e vivia sozinho. Um homem que amou tanto nessa vida e gostava tanto desse amor que tinha medo de se perder de si mesmo. E temia tanto o sofrimento e o vazio de si próprio que aprendeu a usar de escudo o desamor, para evitar a dor de não ser amado.

domingo, 14 de outubro de 2012

ainda que imperfeito




E porque eu já brinquei demais de ser fortaleza não quero mais ter que defender meu castelo dos perigos do mundo 24 horas por dia.
E porque eu já enfrentei todos meus demônios frente a frente por escolha ou por Karma, não suporto mais enxergar demônios e fantasmas serem varridos pra debaixo do tapete da vida.
E porque eu me esforço diariamente para não ser rigorosa, rígida e determinista, me doem as vísceras quando me apontam as minhas certezas como pesadas e impossíveis.
E porque eu passei tempo demais preservando, cuidando e acarinhando o mundo, eu não compreendo quando se nega ao outro o afago simples das belas palavras, do sorriso e da atenção que gente precisa mais que ar puro e grama verde.
E porque eu sinto que passei uma vida toda me permitindo pensar ser autossuficiente para supercompensar as lacunas enormes que carrego comigo, não me agrada ter que deixar de lado meus pequenos desejos e urgências cotidianas sempre que o outro não acha os mesmo genuínos e justificáveis.
E porque meu caminho não me levou para o mundo das frescurinhas do universo esteriotípico feminino não significa que preciso ser sempre racional quase fria sem direito a oscilações hormonais e chiliques culturais aprendidos.
E porque os certos e errados que são levantados como bandeiras, são na verdade relativos e não absolutos, me afeta os nervos não compreenderem minha tendência a relativizar o mundo.
E porque eu sempre resolvi meus problemas sozinha sem fazer escândalo ou exigir atenção, presença e afeto não significa que hoje, depois de tantas indas e vindas eu não possa querer ao meu lado pessoas que dividam comigo sem precisarem me apontar sistematicamente como esse papel requer esforço.
E porque eu não preciso mais ser tão perfeita já que o mundo não vai deixar de ser caos independente do que eu faça, eu decidi que quero apenas ser humana.
Incoerentemente humana. 
Paradoxalmente humana. 
“Demasiadamente humana”.
Quero sentir calor e frio cobrindo o corpo à noite deixando os dois pés de fora.
Quero não gostar mais tanto de doce e às vezes comer chocolate em todas as refeições do dia.
Quero chorar de alegria e tristeza e ficar ruborizada de vergonha boba.
Quero dizer não por que não quero e sim porque desejo sem me preocupar com a reação do outro, já que o outro, caso se quebre, assim como eu, pode ter os seus pedaços reorganizados.
Quero viver sem me limitar por visões de mundo ameaçadoras, que não permitam o erro e que não saibam o gosto de um final feliz, ainda que imperfeito.

sábado, 22 de setembro de 2012

aqui jaz um pouco de mim



Creio que é preciso um pouco de morte diária para que se consiga viver.
Matar uma crença, um vício, uma ideia.
Matar um pouco da menina que não quer crescer, matar um tanto da mulher feita.
Matar os sonhos de amor, matar os planos certos bem traçados na vida.
É preciso um pouco de morte.
Matar um velho hábito e uma nova uma mania.
Matar antigos gostos, matar pensamentos amados.
Matar cortes de cabelos, roupas e cores que caem bem, portos seguros que são tidos como certos, companhias que julgamos não viver sem e desejos que nos atormentam e ao mesmo tempo nos alimentam a alma.
A vida é coisa que nasce na morte de um papel desempenhado e no recomeço de outro talvez temido.
Apenas morrendo, talvez nos deixemos realmente viver.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

a culpa é de Hollywood



A culpa é de Hollywood. 
Com seus filmes de amor e superação.
Com suas ideias de romances e luta.
Ah  a culpa é de Hollywood!
Eu seria bem mais feliz se tivesse crescido vendo filmes experimentais e conceituais.
Mas me ensinaram a ver comédias românticas cujas mocinhas desengonçadas eram felizes no final. 
E que rapazes complicados se tornavam os mais afetuosos e atenciosos amantes – balela.
Somos quem somos.
A mocinha loirinha bonitinha da infância sempre vai ser aquela que encontrará menores dificuldades pelo caminho. 
Ela vai se treinar direitinho para enfrentar os desafios do mundo cão. E talvez até seja feliz.
Aquela meio gordinha inteligente? Sempre vai ser inteligente e profissionalmente brilhante fazendo dieta. Desejando ter sido mais burra e atraente.
O nerdzinho pode até ser o mais bem sucedido mas sejamos sinceros - sempre será mais complicado que o playboyzinho que se preocupa com o carro da moda e as roupinhas de marca.
O playboyzinho sabe o que quer da vida. 
O nerdzinho sabe pensar sobre a vida. Ele sempre vai refletir demais e querer enquadrar o mundo numa escola filosófica ou literária e convenhamos: viver é muito mais que academia.
Viver requer liberdade. 
E todo bom rótulo está preso demais a muita descrição e definição que o limita e o impede de simplesmente ser.
A culpa é de Hollywood.
Eu, se tivesse crescido num mundo sem tanta gente acreditando em tantos certos e errados talvez tivesse menor dificuldade em perceber que caminhar sozinha é mais bonito. 
E não me incomodaria tanto com os clichés.

quarta-feira, 21 de março de 2012

incompletude





Há quem colecione selos, quem colecione títulos, quem colecione livros. 
E é feliz por isso.
Há quem colecione idéias e sonhos que nunca conseguirão ser mais que simples quimera.
E pode ser bem triste.
Mas mais triste que uma coleção incompleta é a sensação de incompletude da vida.
A sensação de que falta, de que “quase...”
A sensação de que não foi ou não pode ser.
Aquela coisa que se sente e que no popular e nas poesias das gentes se encontra como “a saudade daquilo que não se viveu”.
Ahh a incompletude da vida! 
Esse vazio que nasce no peito relativo de cada um.  
E que dói.
Mas que também passa, com novas cores que um dia essa mesma vida traz, ou finge, por gostar tanto de brincar de ilusões.

segunda-feira, 19 de março de 2012

em silêncio



Esse silêncio que não cala vai tomando forma.
E me tomando conta.  
E me roubando o ar.
E me matando as horas.
Queria eu poder matá-lo com um grito agudo.
Ou com a indiferença.
Ou com tranqüilidade.
Esse silêncio que me ensurdece e não me deixa ouvir meu mundo.
Me confunde as certezas.
Me aflige o peito.
Me estremece as vísceras.
Queria eu poder matá-lo com uma gargalhada alta.
Dessas que a gente solta e enrubesce a face.
Dessas que a gente só tem quando se escuta as próprias idéias.
E as reconhece.