sexta-feira, 2 de abril de 2010

ideologia pura

vida
Desejo a superficialidade.
Quero pairar pelo raso da vida sem convicções ou ideias eternas.
Desejo ter apagada essa chama apaixonada pelo que creio. Não quero mais crer em nada.
Quero o desapego das coisas internas.
Quero me tornar a mais pragmática das materialistas.
Quero ter a ambição pequeno burguesa a coordenar meus passos e as velhas convenções do mundo a me confortar as frustrações e fracassos íntimos.
Quero apagar de vez os desejos que me possam causar esses fracassos.
Quero deixar sucumbir à realidade feroz as pequenas causas pelas quais luto, desde sempre, e assumir como meu o sonho maior o protótipo de vida do lugar comum, cujas expectativas são a roupa da moda, o relacionamento padrão e as conversas perdidas nos eventos mais elegantes e influentes da sociedade.
Quero como compromisso diário assistir o Jornal Nacional e acreditar em suas verdades, acompanhando a cotação da bolsa de valores de Nova Iorque e me apavorando com todas as novas epidemias e até mesmo pandemias do momento.
Quero assistir todos os filmes de Hollywood e ter certeza de que no fim das contas nossa falta de humanidade não é defeito tão grave quanto nossa falta de estilo.
Quero me vestir de acordo com as dicas da Glorinha Kalil, ter o penteado liso ou crespo das mocinhas da novela e viver um romance cuja trilha sonora seja a música da que se repete incansavelmente nos carros pelas ruas, que hoje pode ser tocada por uma banda de rapazes emo cantando uma paixão adolescente e amanhã uma dupla sertaneja que fale de traição e de amor como sinônimos.
Quero passar minha vida correndo de um emprego para outro, vestindo a camisa da empresa e tendo a certeza de que o ideal de sucesso é um tailleur de grife e convites para eventos em que ninguém se suporta, mas que todos fazem questão de aparecer juntos na foto oficial, com sorrisos poderosos que escondem os medos e desejos genuínos que por ventura ainda brotem na alma.
Quero ter um casamento longo e duradouro cuja foto da sala recorde o comercial da margarina e esconda bem, assim como meu discurso e meu sorriso ensaiado, os arrependimentos e medos que não me permitiram viver o que eu quis de verdade por exigir de mim coragem e atitudes que muitos não aprovariam ou seriam capazes de apoiar. E que por medo do mundo não enfrentei e guardei para mim.
Quero envelhecer acreditando que aos 60 anos estarei na melhor idade da vida independente da vida que eu tenha levado e do que eu tenha construído e desejado, mesmo sem perceber, pelo caminho.
Quero encerrar minha história tendo a certeza de que valeu a pena não ter questionado o mundo e feito tudo aquilo um dia me mostraram que precisava ser feito, sendo criativa e inovadora apenas quando fosse realmente necessário e previsto.
Quero morrer, enfim, duma dessas enfermidades cuja medicina terá feito de tudo para curar, me revirando inteira e me causando mais dores que a própria doença, mas que me fez mártir no fim da minha jornada.
Sim, eu queria uma vida mais fácil, confesso.
Mas não. Essa não será minha trajetória.
Pois no peito trago comigo uma paixão desesperada pelas minhas verdades e meus anseios que nascem autênticos, confusos e intensos. Tão meus. E pelos quais travo batalhas infindáveis e silenciosas.
Sigo pelo mundo entre amores eternos e irremediáveis.
Aproximo-me do que é mundo sem nunca me esquecer do que sou eu. Trabalhando conforme creio ser correto sem, contudo, ter ambições capitalistas. Conversando com meio mundo, mas tendo por perto apenas quem preciso para poder respirar. Cumprindo os compromissos sem que eles se tornem meus donos e me envolvendo apaixonadamente com quem me faz sentir viva.
Vou jogando dados com a vida - acertando e errando. E pode ser que no fim da minha história eu tenha vivido encantadoramente, estereotipadamente ou não, mas por opção. Talvez tenha permanecido sozinha ou tenha tido um amor de televisão e venha a ter uma velhice que pareça realmente ‘a melhor idade’.
Mas quando eu for embora dessa Terra ‘de morte matada ou morrida’, com muito sofrimento ou nenhum, não importa, não serei mártir, nem tampouco terei vendido as necessidades mais minhas.
Talvez simplesmente morra de ideologia fulminante.

2 comentários:

  1. Bravo!!! Esplendido!!! Conciso, coerente e irresistível seu texto. Tem toda razão, me acho totalmente em vc nessas linhas todas. Ufa, me deu até dorzinha no peito!
    "vivido encantadoramente... Talvez simplesmente morra de ideologia fulminante."

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  2. "Quero encerrar minha história tendo a certeza de que valeu a pena não ter questionado o mundo e feito tudo aquilo um dia me mostraram que precisava ser feito, sendo criativa e inovadora apenas quando fosse realmente necessário e previsto."

    Quero, mas não consigo. O caminho sofrido e complexo das análises sistemáticas do comportamento humano e suas consequências para a vida em sociedade me constitui. Deus é mau!

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